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O ancestral canto afro(brasileiro) dos Tincoãs

“Esse disco faz parte de algo maior, que não devemos  esquecer: ancestralidade, memória e resistência. A obra dos Tincoãs resiste ao tempo e sua relevância como instrumento de afirmação e reafirmação da identidade afro-brasileira é inegável.”

Badu

“O tempo não pára e o tempo é o mesmo… foi uma surpresa muito grande tomar conhecimento deste trabalho 20 anos depois que foi gravado, em 2003, quando retornei de Angola. E agora ele vai ser apresentado ao público praticamente 20 anos depois. É bonito isso. É um trabalho atemporal porque o homem talvez tenha sido projetado para ser atemporal, evoluir, mas ser atemporal.”

Mateus Aleluia

Os Tincoãs, belo e originalíssimo trio vocal (Mateus, Dadinho e Heraldo, depois Badu) da cidade de Cachoeira, região banhada pelo caudaloso Paraguaçu, que passa por aquelas terras férteis cantando suas canções de rio até descansar de sua longa caminhada nessa estrada líquida, até se santificar, se batizando nas águas salgadas da baía de Todos os Santos, santas águas que banham a cidade sagrada do Senhor do Bonfim, Salvador. A pioneira ideia de vocalizar com beleza única, os ancestrais “pontos” do candomblé, deu a esses cantos o passaporte de livre entrada no ciclo da música popular brasileira, circuito nem sempre muito aberto e de boa vontade, com qualquer aventura artístico-cultural. Depois de chegar ao primeiro lugar de execução e venda de discos, com a música “Promessa ao Gantois” homenagem à famosa, saudosa e inesquecível Yalorixá, mãe Menininha, os Tincoãs conquistaram crédito de  passagem livre junto ao grande público, para depois também mostrar corajosamente, um repertório ancestral muito velho, “cantando cantos em Yorubá, (nagô) e kimbundo arcaicos, com duzentos e cinquenta mil anos, (250 mil), segundo a antropologia original de Nigéria e Angola”, como primeiro nos atestou seguramente Paul Francis Kayodê (Ifá Kayodê) e Boaventura Cardoso; o primeiro já formado em Oxford na Inglaterra e fazendo uma pós graduação na UERJ Rio de Janeiro, filho e herdeiro de culto do pai, tradicional lider religioso afro-cultural de Lagos, na Nigéria, e o segundo, ex-ministro da cultura e professor antropológico das línguas autóctones, (originais Kimbundo, Umbundo e Kioco ). Cantos arcaicos, repetindo, mas totalmente novos, mesmo para os aficcionados seguidores da cultura religiosa afro-brasileira, devido a belíssima roupagem, rítmico-harmônico dos Tincoãs, e arranjos do maestro Leonardo Bruno, com os cantores do coral dos Correios e Telégrafos, do maestro Armando Prazeres, trabalho esse, bem vindo ou bem chegado, mesmo para os tradicionais terreiros ou comunidades da cultura negra do candomblé, e também ao grande público em geral. Esses cantos ancestrais, preservados pela lealdade espirito-cultural dos seguidores do culto negro no Brasil, são o nosso gospel ou spiritual, como o canto das igrejas evangélicas americanas, a base do Jazz e por isso mesmo, culturalmente muito badalados pela midia internacional, porém antropologicamente menos importantes que os nossos cantos negros, pois foram criados em inglês, enquanto os nossos, em Yoruba e Kimbundo arcaicos, remontam à duzentos e cinquenta mil anos. Esse trabalho dos Tincoãs, vindo agora em público com o oportuníssimo apoio patrocinador da empresa NATURA, é uma bela e pioneira contribuição para a preservação da cultura que vem dos mais diversificados fundos, raízes das raízes, de toda nossa riqueza cultural popular brasileira.

Adelzon Alves

Produtor musical

Há um provérbio iorubá que diz que Exu matou ontem o pássaro com a pedra que arremessou hoje. Atravessar as dobras do tempo para reencontrar o vôo do pássaro, aventura típica de Exu – assim é a jornada do álbum “Canto coral afrobrasileiro”, dos Tincoãs. Gravado em 1983 por Dadinho, Mateus e Badu (a última formação em trio do grupo), o álbum traçou, ao longo desses 40 anos que antecedem o seu lançamento, delicadas tramas invisíveis. Brasil, Angola, Cachoeira, Luanda, Rio Paraguaçu, Rio Kwanza, Rio de Janeiro: as lutas de lá, as barras de cá, as águas doces por baixo, o mesmo oceano a nos banhar: o tempo. Nos meses que antecederam a definitiva viagem para Angola, os Tincoãs gravaram 10 faixas que viriam a compor o disco canto coral, projeto idealizado por Adelzon Alves, que àquela época vislumbrava um arranjo sinfônico de vozes a envolver a excelência vocal do trio. Como flecha de caboclo lançada no ventre do mundo o projeto foi iniciado, por falta de recursos foi interrompido e pelos caminhos da vida o grupo se desfez. A Baía de Luanda tornou-se a morada de Mateus e Dadinho, almas de gato a espreitar no mundo outros cantos possíveis. Guardado por Adelzon Alves por quase vinte anos até que voltasse às mãos de Mateus, o álbum sempre esteve ali, vibrando em frequências silenciosas, contornando os ares em seu percurso de flecha, até que, enfim, no chão de 2023 resolveu pousar. Miríade harmônica da experiência afrobarroca sustentada na cultura indígena, como bem conceitua Mateus Aleluia, o canto coral dos Tincoãs é manifestação preciosa da inventiva brasilidade em sua universalidade de cruzos, gira encantada e vertiginosa que alimenta o chão do Brasil. O coral que dá título ao trabalho é a soma de muitas vozes que atravessam mais do que 40 anos, uns 4 séculos pelo menos, mas não só. Coral é também matiz do mistério que corre nesta terra desde tempos imemoriais, fundando tantos novos caminhos. É canto, dança, coro, movimento… E vem de longe, de muito longe. Livres dos limites e fronteiras os Tincoãs voam, pássaros que são, atravessando matas, mares e céus para traçar – com suas flechas corais – uma geografia singular da alma do povo brasileiro.

Tenille Bezerra
Direção Artística e Produção Executiva

Os Tincoãs são
Dadinho, Mateus e Badu

1983

Direção Artística:
Adelzon Alves

Gravado nos Estúdios Transamérica, em 1983, no Rio de Janeiro

Participação:
Coral amador da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos

Arranjos para coral:
Leonardo Bruno

Regência do coral:
Leonardo Bruno e Armando Prazeres

2023

Direção Artística:
Mateus Aleluia e Tenille Bezerra

Produção Executiva:
Tenille Bezerra

Remasterizado por Tadeu Mascarenhas no Estúdio Casa das Máquinas

Supervisão Técnica:
Mateus Aleluia, Adelzon Alves, Leonardo Bruno

Músicas

1. Ajagunã
2. Oyá Pepê Oyá Bá
3. Misericórdia
4. Key Iemanjá
5. Obaluaiê

6. Cequecê
7. Ogundê
8. Pelebé Nitobé
9. Salmo
10. Lamento às águas

Ficha técnica

Coordenação Geral:
Tenille Bezerra | Talismã Arte e Cultura

Supervisão Artística:
Mateus Aleluia

Coordenação de produção:
Tiago TAO

Consultoria Jurídica:
Emerson Cabral

Secretária Executiva:
Catiana de Jesus

Contabilidade:
Magno Santos

Pesquisa textual e iconográfica:
Danielle dos Santos

Identidade visual, gráficos e webdesign:
Rafael Todeschini e Erika Martins / Obliquo Identidades & Narrativas

Animação:
Nathalia Casemiro

Desenvolvimento web:
Adriano Marques

Assessoria de imprensa:
Fernanda Couto

Textos:
Adelzon Alves, Zezão Castro, Tenille Bezerra

Distribuição:
Altafonte

Conteúdos para mídias sociais:
Talismã Arte e Cultura

Direção e montagem:
Tenille Bezerra

Finalização de áudio:
Tadeu Mascarenhas

Animação:
Dario Vetere

Canto Coral Afrobrasileiro dos Tincoãs tem 10 músicas, quatro delas inéditas, e foi gravado em 1983
Por Zezão Castro

“Agô” para os encantados, “agô” para os antepassados. “Licença” a todos. E que esta permissão seja concedida pelas forças invisíveis antes que você baixe nas plataformas de streaming os transcendentais decibéis deste álbum inédito d´Os Tincoãs.

Após 40 anos na prateleira, Mateus Aleluia, o remanescente vivo que mais tempo esteve no legendário trio baiano, decidiu disponibilizar as 10 faixas, quatro delas nunca gravadas antes. Há também o acompanhamento do Coral dos Correios e Telégrafos em seis músicas, acrescentando às harmonias afro-sacro-bolerísticas do grupo um tom mais barroco, devidamente ornado com o violão de Dadinho, os atabaques de Mateus e o agogô e ganzá de Badu. Nas quatro faixas restantes, prevalece o som d´Os Tincoãs no formato que os consagrou.

VINIL- Todas as faixas deste lançamento foram compostas e adaptadas pela dupla Mateus e Dadinho e, para alegria dos estetas, também serão lançadas em vinil. O conceito do Canto Coral Afrobrasileiro foi idealizado, à época, pelo então produtor do trio, Adelzon Alves. Com Os Tincoãs desde 1973, época do 1º disco da fase afro, (o homônimo de estreia com o hit Deixa a Gira Girar) ele via no estilo do grupo, segundo Mateus Aleluia, “uma projeção pra um coral de cantos indefinidos, o verdadeiro canto coral canto coral afrobrasileiro”.

Por conta da sua atuação como radialista, Alves conhecia, também, o gênero musical spirituals – cânticos religiosos entoados por corais de pessoas pretas do Sul dos Estados Unidos – além de atrações gospel, como a cantora Mahalia Jackson. “Eu queria fazer algo assim com Os Tincoãs: um gospel afrobrasileiro, mas com as músicas que eles cantam em iorubá e banto, cuja origem tem mais de 2500 anos, segundo especialistas, um repertório de grande importância antropológica e histórica para o Brasil e o mundo”.

GRAVAÇÃO- Gravado nos Estúdios Transamérica (RJ), em 1983, e remasterizado por Tadeu Mascarenhas, no Estúdio Casa das Máquinas, em 2022, os registros foram realizados semanas antes de o trio vocal originado em Cachoeira partir para Angola, em excursão com Martinho da Vila. As bases dos três integrantes, gravadas em separado, ficaram prontas no Brasil aguardando apenas os prometidos complementos vocais.

No período dessas gravações, o conjunto que tem nome de pássaro planava num voo indeciso. Já tinha quatro LPs e cinco compactos gravados, além de ter alcançado o reconhecimento entre colegas e público. Nas emissoras da época, fizeram apresentações memoráveis nos seguintes programas: Flávio Cavalcante (TV Tupy), Mário Montalvão (TV Tupy), Aérton Perlingeiro (TV Tupy), Chacrinha (na tevês Bandeirantes e Tupy) Globo de Ouro e Levanta a Poeira (ambos da TV Globo). Participaram, ainda, da trilha sonora de Escrava Isaura, da mesma emissora.

ANGOLA – Os africantos ecoavam mais longe do que nunca. Mesmo assim, pairava uma sensação de incompletude no ar, de expectativa em relação ao tal do sucesso: “O que se faz? O que se fez?”, perguntavam-se Mateus, Dadinho e Badu. E a conclusão era clara: “As portas estavam abertas mas, depois, pra sentar à mesa, não conseguíamos sentar…”. Desembarcaram, então, em Luanda para uma temporada de sucesso e revelações na ancestral capital angolana. Andando em meio ao desgastado casario colonial lusitano, sentiram, imediatamente, um quê de Cachoeira. Luanda e o Caquende eram quase uma coisa só.

QUIMBUNDO – Mas os nativos não entenderam nada, mesmo, foi quando o grupo brasileiro soltou o gogó, cantando, afinadíssimo, em quimbundo arcaico. Arrepios, chororôs, aplausos. A ponte estava restaurada. Outro momento marcante por lá foi quando milhares de pessoas se juntaram ao trio e cantaram juntos Sou de Nanã Ewá /Ewá Ewa ê/ Sou de Nanã Ewá/Ewá Ewá. O almejado lugar à mesa estava, definitivamente, sendo conquistado do outro lado do Atlântico. Parecia que as coisas, finalmente, se ajeitavam.

Acontece que os búzios ainda estavam sendo mexidos nas mãos do destino. Antes de completar um mês dessa chegada, Badu informou a Dadinho e a Mateus que voltaria para o Rio de Janeiro o que precipitou o fim do trio vocal. A dupla remanescente continuou por lá. Mateus foi trabalhar com publicidade (voltou à música em 2002) e Dadinho ficou no comércio, tendo falecido de derrame em Angola em 2000. A dupla ainda gravaria um LP, em 1986. Badu é, atualmente, cantor, produtor e vive nas Ilhas Canárias (Espanha).

ARRANJOS – Enquanto o carrossel dos Tincoãs girava a milhão no Velho Continente, do lado de cá, Adelzon se virava com a missão de completar o projeto afro-coralístico. Para escrever os arranjos vocais, escolheu o maestro Leonardo Bruno, seu conhecido, e com trabalhos feitos em parceria com Gilberto Gil, Golden Boys, Clara Nunes, Erlon Chaves além do próprio trio baiano, cuja faixa Chapeuzinho Vermelho tinha sido arranjada por ele no LP de 1977.

A próxima etapa seria localizar um coral apto para esta empreitada e seu respectivo regente. A incumbência coube ao maestro Armando Prazeres que, à época, regia o Coral dos Correios e Telégrafos – além do próprio Leonardo Bruno, que também foi pra batuta. Para reforçar as bases rítmicas nas faixas com coral, foi arregimentado o não menos legendário percussionista brasileiro, Pedro Sorongo. Com esse time em campo, fechara-se o conceito do sonhado disco de tom afro-caboclo-gregoriano.  Em tese… pois, como já se viu, na gira dos Tincoãs, nem tudo que parece simples o é.

PATROCÍNIO – A instituição que bancava o disco, no meio do processo, cortou as verbas. “Parece que o patrocinador perdeu o interesse…”, sintetiza Adelzon Alves. Tempos depois, as fitas de rolo foram dadas ao produtor do grupo, faltando algumas das orquestrações pretendidas. Este fez uma pré-mixagem com o que tinha, ainda no Rio de Janeiro, e, entregou o material, já digitalizado em CD, pra Mateus Aleluia, após seu retorno de Angola, em 2002.

Nesse mesmo ano, Seo Mateus, como é carinhosamente chamado, já estava morando na capital baiana e leu numa matéria de jornal local que um jovem produtor, Tadeu Mascarenhas, estava abrindo seu estúdio de gravação e tinha o sonho de trabalhar com o veterano ou qualquer material relacionado a Os Tincoãs. Foi a senha para que, uma vez mais, o baú fosse aberto.

Dias depois, o remanescente Tincoã, hoje um senhor de cabelos brancos, puxou a corda da campainha do estúdio, no Rio Vermelho, para surpresa do, então, iniciante. Estabelecida uma amizade e parceria, Aleluia pediu para que Mascarenhas guardasse o CD a fim de que, no futuro, “quem sabe”, pudessem trabalhar naquilo. O resgate de fato aconteceu através da parceria com a cineasta e produtora Tenille Bezerra, diretora do documentário Aleluia, o canto infinito do Tincoã (2020). Ciente do disco guardado, a parceira, entusiasta do lançamento, abraçou a produção executiva e o resultado já pode ser conferido nas principais plataformas de streaming.

SINGULARIDADE – O que era pra ser uma deficiência financeira acabou por dar um toque singular a Canto Coral Afrobrasileiro. Uma parte ficou orfeônica, como queria o produtor, e a outra na pegada “tincoãs-raiz”,apenas com as três vozes e seus respectivos instrumentos (violão, atabaques, agogô e ganzá). Quer seja orixá, como dizem os da nação ketu, inquice, como se referem os banto/congo/angola, ou voduns, como denominam os da nação jeje, já não importa. Estão todos no mesmo vinil, em convivência com os caboclos e santos católicos, na abençoada lírica do grupo.

Como resultado, o público audiófilo ganhará, mais uma vez, a rara oportunidade de contemplar os oníricos vocais de Dadinho, o mais agudo, Badu, o médio e Mateus, o barítono, em ambos formatos: trio vocal e trio vocal com coral. No lado A, estão as faixas orquestradas (com exceção da 1ª). No B, as “cruas” (com exceção da última e da penúltima). Enfim, eis um diamante musical devidamente lapidado, onde o ouvinte se deliciará com duas concepções de música magistrais, pensando no que é e no que poderia ter sido.

Saravá, Tincoãs.

 

Os Tincoãs canto a canto

O Lado A abre com a faixa Ajagunã. Lançada em compacto no ano de 1982 (RCA), é um canto de louvação a Oxaguian, (avatar de Oxalá quando jovem). É, também, a única faixa não-orquestrada nesta face do disco. Trata-se de um orikí , palavra iorubana originada da junção de orí (cabeça) e ki (saudação), ou seja, um canto de saudação “à cabeça” ou ao guia que rege a cabeça de alguém. “Tudo começa na cabeça”, relembra Mateus Aleluia. Esta música era o sucesso da época do grupo, que a defendeu no Festival MPB Shell no ano em que foi lançada.

Oyá Pepê Oyá Bá,  a 2ª faixa, abre o grupo das inéditas em disco. Cantada em idioma iorubano, é outro oriki, dessa vez em louvação a orixá Iansã (Oyá), identificada na mitologia afrobrasileira como a rainha dos raios, senhora das tempestades, rainha guerreira. Foi esposa de outros orixás, destacando-se Ogum e Xangô. Numerosos terreiros do Recôncavo e da capital baiana tem essa divindade como figura maior de suas casas de culto ancestral.

Na sequência, vem Misericórdia, pinçada de um compacto lançado em 1974 (Odeon). A música reflete a osmótica formação artístico-musical dos habitantes do Vale do Paraguassu. Naquelas paragens, dorme-se ninado pelos toques da ritualidade africana e acorda-se com o dobrar dos sinos da Matriz. Mateus participava do Coral da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Cachoeira, na adolescência, e seu tio Clarício era instrutor musical na Filarmônica Lira Ceciliana. Nas décadas de 40 e 50, os cultos católicos eram celebrados em latim e sempre havia a parte do Miserere Nobis (Tende Piedade de Nós). Com o brilhantismo de sempre, Os Tincoãs, harmonizam a litúrgica mea culpa, revezando suas vozes com os contracantos do Coral dos Correios e Telégrafos, africanizando a missa ibérica, como só eles sabiam fazer.

 Key Iemanjá é outro oriki inédito em disco que, só agora, ganhou seu registro definitivo. Cantado em Iorubá em louvação à rainha das águas, à mãe de todas as cabeças, inclui também preces a Oxumaré. Em Cachoeira, na beira do Rio Paraguassu, os filhos de Iemanjá esperam até a maré cheia tornar a água do rio mais salobra, a fim de que se torne propícia para as oferendas à rainha do mar. Na maré baixa, as águas, menos salgadas, tornam o rio mais propício às oferendas para a orixá Oxum, rainha das águas doces.

Obaluaê é o número que fecha o lado. Nesta releitura, mais lenta que a original, lançada no disco homônimo de estreia da fase afro (Odeon, 1973), o ouvinte é induzido a pensar que o canto gregoriano surgiu n´algum quilombo do massapê canavieiro do Recôncavo. A divindade da saúde e da cura é reverenciada, aqui, em canto bilingue (português e Iorubá). Protetor dos pobres contra as doenças, ele rege as questões de vida e morte. Carrega sempre sua lança de madeira para espantar energias ruins e espíritos errantes.

O Lado B, abre com Cequecê, uma reverência aos candomblés da linha Banto/Congo/Angola. Saúda os inquices (orixás), e, ao mesmo tempo, relembra a acolhida que Os Tincoãs tiveram em sua estada angolana, de 1983 até os anos 2000. Com versos adaptados por Dadinho e Mateus, o cântico chama a atenção pelo entrosamento entre as vozes e o tripé violão, atabaques e ganzá.

Ogundê é uma faixa que revela uma mescla de mistério e solenidade espiritual, consagrados ao orixá Ogum. Ogun-dê, em iorubá, significa Ogun “chegou’. Gravada pela 1º vez em 1973,  é a sétima faixa deste novo LP. Sete é, também, o número desta divindade. Já no início, com o violão dedilhado de Dadinho e o arranjo das três vozes, a música passa a sensação de que a senzala, a aldeia e o monastério se confundem na gênese dessas harmonias vocais. Os atabaques, tocados por Mateus, e o agogô, tocado por Badu completam, com maestria, a vestimenta da música.

Pelebé Nitobé é outra faixa também inédita na discografia do grupo. É dedicada ao orixá Ossanha (ou Ossãe), aquele que sabe o segredo medicinal das folhas. O título, por sinal, também vindo do iorubá, significa que as folhas, (Ewe) “tem duas faces”. A primeira frase da faixa, “axé, babá”, significa “força, pai”. É uma interpretação, como as demais, repleta de espiritualidade, onde se pede à divindade reverenciada que as doenças não encostem, se afastem, salientando que as folhas, por ele manipuladas, tem o poder da cura.

Salmo é uma oração lançada, originalmente, no LP O Africanto dos Tincoãs (RCA, 1975). Realça a influência da religião católica na formação do grupo.  As vozes do coro, regidas pelos maestros Leonardo Bruno e Armando Prazeres, em conjunto com a lírica empregada, tornam a canção perfeitamente adequada para qualquer culto cristão. O eu lírico suplica intervenção de Jesus para que acabe com a seca que queima as pastagens e pede compaixão para com os contritos romeiros. O instrumental tincoã, como sempre, fornece a atmosfera de terreiro, dotando de ritmo afro-caboclo a espiritual melodia.

Lamento às Águas fecha o trabalho. Assim como a anterior, tem a presença do coral. Gravada originalmente no outro LP homônimo (RCA, 1977), a faixa rende homenagens aos orixás e caboclos. O coral, mais uma vez, empresta um caráter divinal, com sua divisão de vozes. É destinada também aos caboclos Onymboiá e Eru, também citados antes do encerramento do cântico. Axé.

 

Os Tincoãs: Discografia e Formações

Dadinho, Heraldo e Erivaldo
LP Meu Último Bolero, (Musicolor, 1961)

Dadinho, Heraldo e Mateus
LP:  Os Tincoãs (Odeon, 1973)
Compacto Simples:  Misericórdia / Saudações aos Orixás  (Odeon, 1974)

Dadinho, Morais e Mateus
LP O Africanto dos Tincoãs (RCA, 1975)
Compacto simples: Promessa ao Gantois / Anita (RCA, 1976)
Compacto simples: Banzo / Jó (RCA, 1976)  * Banzo entrou na trilha sonora da novela global Escrava Isaura
Compacto duplo: Oxóssi te chama e Salmo / Ogum Pai e Promessa ao Gantois (RCA,1976)

Dadinho, Badu e Mateus
Compacto duplo: Cordeiro de Nanã e Canto do Boiadeiro / Promessa ao Gantois e Chapeuzinho Vermelho (RCA, 1976)
Compacto Simples: Cordeiro de Nanã / Atabaque chora (RCA, 1977)
LP: Os Tincoãs (RCA, 1977)
Compacto simples: Embola, Embola / Mãe D´água é Rica (Warner, 1980)
Compacto simples:  Ajagunã / Chororô  (RCA, 1982)
LP: Canto Coral Afrobrasileiro (*gravado em 1983 mas lançado pelo selo Sanzala Cutural em 2023)

Dadinho e Mateus
LP: Os Tincoãs Dainho e Mateus (Cid, 1986)
Dadinho e Mateus

PARTICIPAÇÕES:
Coletânea: Carnaval 76 – Convocação Geral, com a faixa Quebra Quebra Guabiraba  (Som Livre, 1976)
Trilha Sonora de Escrava Isaura, com a faixa Banzo (RCA, 1976)
Faixa Vieram me Contar, do LP Novas Palavras , de Martinho da Vila (RCA, 1983)

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O exercício da regência e da orquestração pode-nos gratificar. De modo surpreendente em 1983, numa brilhante produção do mestre Adelzon Alves, tive o privilégio de orquestrar e reger peças valiosas, lindíssimas, do grupo Tincoãs. O contrito caráter religioso, mesclado à sensualidade e ao virtuosismo vocal fizeram-me /fazem-me (mais que amar esse trabalho que realizei ao lado do querido colega Maestro Armando Prazeres) orgulhar -me por dele ter participado.

Maestro Leonardo Bruno
Arranjador

Era o ano de 2003, eu estava lançando o meu primeiro selo musical “Plataforma de Lançamento” quando numa entrevista de jornal citei que tinha o desejo de lançar artistas inéditos e relançar alguns dos antigos que na época eram praticamente desconhecidos, como “Tincoãs”. Poucos meses depois, Seo Mateus Aleluia, recém retornado de Angola após 20 anos lá, foi ao Estúdio Casa das Máquinas à minha procura com o jornal debaixo do braço. Assim começamos a trabalhar juntos até que meses depois ele me confiou a cópia de um disco inédito dos Tincoãs que teria sido gravado instantes antes do grupo debandar pros lados d’África na década de 80. O disco se chamava O Canto Coral Afrobrasileiro dos Tincoãs. Uau! Agora, novamente 20 anos depois, trabalhar na remasterização desse álbum foi como revelar um filme guardado há 40 anos. Através dele podemos visitar o ambiente sônico e único desse trio que nos conduz pelo tempo através da música ancestral e original da Bahia, a fusão do Afro com o Barroco em terras indígenas. Saravá!

Tadeu Mascarenhas
Produtor Musical